Bonino Vicente José Guorlart (Doque, da Prainha), Mestre Doque, faleceu em 28 de outubro de 2020, pressentindo sua “hora” na madrugada desde dia triste! Desde as crianças pequenas aos adolescentes da sua família além dos chegados vizinhos e os das vizinhanças, numa fraterna obrigação, faziam as referências diárias ao Doque. Para uma geração – crianças, adolescentes, mulheres, moradores e pescadores cabistas, inclusive, alguns pesquisadores, não cabistas, a lembrança que ficará é a imagem de um senhor de riso simpático, sempre de chapéu, blusa listrada e aberta nos primeiros botões, silencioso, pensativo e concentrado em gestos rápidos, sincronizados e com pausas nas mãos ao porfiar as grandes tarrafas na varanda da sua casa. Quando alguém se aproximava da sua varanda era o motivo para ele parar a feitura da tarrafa para longamente prosear sobre o Arraial do Cabo com sua gente, pesca e peixes de passagem…
Eu fugia dele – diante do meu corre-corre -, confesso! Era impossível não ficar uma manhã ou uma tarde inteira numa prosa longa, profunda e sabedora sobre o mar com as suas pescarias, embarcações e petrechos. Doque me trouxe a natureza profunda com os seus ventos, nuvens, correntezas e além das cores e temperaturas das águas e das fases das luas com seus horários de revoltas e de bonanças e no “correr” ou no “deslocar” das estrelas “à moda cabrito”! A mesma está irmanada, encarnada, corporificada e entranhada nos pescadores tradicionais, artesanais e profissionais.
“Tá entendendo? Às vezes, eu sigo a mente procurando coisas. Também, o mar. Você sabe que o mar fala? Pois é, com certeza!”, Pois… o “mar tem conhecimentos”, o “mar fala”, o “vento fala” e a “maré está sendo sustentada pela própria maré” (devido ao fenômeno da ressurgência). E, mais ainda: “a maré traz um pó, uma vitamina para alimentar o peixe. Tem isso também no mar”. Disse-me certa vez o Doque! Ou mesmo, quando ele falava sobre os territórios da pesca com os seus peixes de passagem e as tentativas de transmitir – no aprender a aprender à “moda cabrito” ou à “moda chuveiro” – sobre os “pegas” e as “valentias” do mar que bate nas embarcações em revoltas, refrescas e bonanças.
“Mas eu disse e estou falando a você, porque eu tenho a prática. E aprendi com a própria natureza…”. Assim relatava o Doque que, me ensinou, e, que aprendeu, inclusive, com os antigos pescadores, sobre a natureza profunda que “fala”, “sente” e “emite” sinais, códigos, cores, correntezas e movimentos na fluidez das águas, dos ventos, das nuvens e dos corpos celestes que se prenunciam de maneira ontológica (quase humana!), nos extremos dos humores tempestivos e nas bonanças, em mudanças e transformações diárias. Nestes “tempos sombrios” é bom saber ouvir, falar, sentir e interpretar a natureza e os sentimentos profundos inclusive sobre as pescarias tradicionais enquanto legado e herança patrimonial desde os tempos dos antigos pescadores e dos atuais mestres sabedores da cultura popular de Arraial do Cabo. Deixo a deixa do Doque para as futuras gerações de moradores e pescadores cabistas e dos da Região dos Lagos para refletirem, legarem, salvaguardarem e cuidarem da natureza profunda:
“Você sabe que o mar fala? Pois é, com certeza!” – Mestre Doque, pescador tradicional e fazedor de tarrafas.
Por Paulo Sérgio Barreto (Sociólogo)