Um mergulho, a muitas mãos, nas profundezas da memória da Região dos Lagos

Um mergulho, a muitas mãos, nas profundezas da memória da Região dos Lagos

Pesquisar hoje no campo da memória exige do investigador um olhar bastante atento pois, como qualquer construção cultural, o olhar para estes aspectos do pensamento humano vem sendo reconstruído em paralelo à transformação do próprio viver. Se a vida hoje se estrutura em redes, pensar a memória deve trazer consigo a disposição de fazer eclodir as narrativas da memória que igualmente se tocam, mas nem sempre são o centro do interesse na construção da ideia de bens culturais e das heranças que somos capazes de identificar. Aliás, a própria capacidade de identificação destas referências culturais está diretamente associada às vozes que se somam: quanto mais diversa a representatividade de quem colabora nesta missão, mais diversificado será aquilo que nos representa enquanto herança, enquanto patrimônio cultural.

Se por um relativo longo período este debate da memória teve a matéria como epicentro, o deslocamento do interesse na direção das imatérias de valor, vividas nas últimas décadas, nos coloca uma questão fundamental da contemporaneidade: sem perder de vista a importância da matéria, é necessário colocar no centro do debate os sujeitos e suas intersubjetividades. Particularmente, penso que este é o caminho que, até aqui, vem apontando uma possibilidade de um patrimônio mais representativo de nossa maior e inequívoca unidade: a nossa inegável diversidade.

O livro “Cabo Frio Revisitado: a memória regional pelas trilhas do contemporâneo”, que tive o imenso prazer de lançar recentemente pela Editora Sophia (Dez./2020), dialoga com este processo. Durante a última década, venho me dedicando a pesquisas, trabalhos e leituras que lidam com a memória regional como objeto de interesse. Neste contexto, quem está no interior do estado há de se reconhecer no que digo: nem sempre estar perto da capital é garantia de acesso a acervos ou às trilhas da pesquisa científica que revelem os percursos de constituição das memórias do território no interior, e consequentemente de suas populações.

A região de Cabo Frio, dada sua profunda balnearização, sobretudo a partir dos anos 50, imprimiu para este espaço uma grande transformação e uma narrativa aliada ao turismo de praia, que, se por um lado movimenta a economia local e é hoje seu ativo principal, por outro, veio enevoando seu passado. E veja bem, este passado não se inicia em 1615 com fundação da cidade (que celebrou seus 400 anos recentemente), como muitos tendem a pensar. A falta de acesso ao que produziu até aqui a ciência deixa escapar, por exemplo, que dos 4,5 bilhões de anos do planeta Terra, a macro região litorânea de entorno da Laguna de Araruama – parte do “antigo Cabo Frio”, que orienta o recorte do livro – nos demonstra, sozinha, em suas formações rochosas, istmos, ilhas e praias uma variedade de exemplos de diferentes idades, desde formações de deposição de cerca de 123 mil anos nos esporões que formam o expressivo desenho dos bolsões da laguna, chegando até formações belíssimas de até 2 bilhões (sim, eu disse bilhões) de anos. Cito isso, mas poderia ainda citar o que se desconhece sobre as nossas populações primeiras, os Sambaquieiros (que aqui viveram há mais de 4.000 anos) ou sobre o surpreendente ciclo de desembarques ilegais de africanos escravizados nas enseadas recortadas do antigo Cabo Frio, após as proibições de tráfico no Atlântico em 1831, e cuja documentação já veio à tona pelas mãos da pesquisa científica.

Tive acesso a estes conteúdos ao longo da última década, em trabalhos variados que vivenciei na região. Neste período, fui tomando contato com teses, dissertações, monografias, seja no contexto de minhas pesquisas acadêmicas ou nos trabalhos da preservação, onde muitos dos autores tornaram-se amigos e parceiros em outros contextos. Foi, portanto, este sobrepor continuado de conteúdos, em meio à prática de trabalho, que ao longo dos anos, foi capaz de saturar o meu olhar para uma incólume evidência ainda para mim desapercebida: que embora já sistematizados em suas áreas, este conhecimento não chegava às mãos do professor ou do leitor interessado no tema, ou ainda, quando chegava, não dialogavam uns com os outros, sendo apreendidos de maneira isolada.

Unir estas pontas foi, por consequência, o intuito da publicação que hoje se apresenta. Aceito o projeto pela Editora Sophia – com quem eu já havia colaborado antes e que vem dedicando parte de seu catálogo a estudos relacionados à região –, desenhei uma seleção de temas e pesquisas que me pareciam fundamentais na construção sociocultural deste lugar e fiz os convites, todos eles aceitos de imediato e com o mesmo entusiasmo que o projeto me imprimia. Aos autores que integram a obra, pedi que fossem claros nos textos, para leitura de público diverso, mas sem perder seu rigor científico; e que fossem atentos e generosos em suas bibliografias, para abrir portas a novas pesquisas futuras e revelar as fontes usadas.

O que se seguiu, então, foram dois anos de produção, no qual me dediquei aos capítulos que me couberam nesta empreitada, e na leitura atenta dos textos dos colegas, na medida em que iam sendo produzidos. Neste trajeto, a principal função como organizador foi estabelecer as costuras possíveis, fazendo com que os assuntos se alimentassem entre si. Afinal, como entender o sal, sem falar de escravidão negra ou a construção oficial da ideia de “caboclos”, que abriu portas para a expropriação final das terras na região? Como conceber a formação territorial, sem falar das rupturas e conexões, como a chegada da ferrovia ainda no século XIX à borda da laguna salineira e sua tardia expansão nos anos 30 até “o Cabo”, já em competição desigual com o projeto rodoviarista brasileiro que nos anos 50 nos tocaria fortemente?

É nesta costura, portanto, que a obra tomou corpo. E para mim, além do prazer já implícito destes diálogos inerentes à organização, como não havíamos estabelecido data de finalização do projeto (estabelecemos que lançaríamos tão logo estivessem maduros os textos, tomasse o tempo que fosse necessário), pude ainda, pelo traço, tão caro a nós arquitetos, aportar ilustrações inéditas para todos os capítulos, adicionando visualmente uma experiência nova ao leitor interessado no tema da memória. Assim, fui traduzindo em imagens parte das reflexões, desde a capa, passando pela abertura de cada capítulo, até ilustrações feitas especialmente para alguns capítulos, quando o tema pedia esta expansão gráfica.

Olhando hoje o livro pronto e a receptividade e retorno excelente que tenho recebido de quem toma contato com a obra, acho que conseguimos tocar algo sensível, aportando uma bela colaboração para a região. Além disso, acredito que terminamos por igualmente colaborar com a própria maneira de se abordar memória regional; como bem coloca o amigo e professor Gustavo Rocha-Peixoto (FAU/UFRJ) no prefácio do livro, navegamos pela alternativa possível de se construir uma memória efetivamente regional: pleiteando centralidade, mas sem negar o Mundo. Gosto desta leitura, ao que acrescento: e não se pode fazer isso sem admitir a multifacetada possibilidade de construção do conhecimento, que não é concorrente, mas uma soma, na medida em que se abre espaço para que este processo aconteça a muitas mãos.

O “Livro Cabo Frio Revisitado: a memória regional pelas trilhas do contemporâneo” pode ser adquirido através do site da Sophia Editora (www.sophiaeditora.com.br), pelo site do Ateliê Belas Janelas (www.belasjanelas.com) ou presencialmente, na Livraria Nobel e no Quiosque Papa Letras, ambos no Shopping Park Lagos, em Cabo Frio.

Por Ivo Matos Barreto Júnior* (Organizador), arquiteto, Mestre em Projeto e Patrimônio (UFRJ) e atualmente é professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Univ. Estácio de Sá/ Cabo Frio), dedicando-se a pesquisas no campo da arquitetura e da memória.