A data de comemoração do Dia do Cinema Brasileiro está cercada de controvérsia, alimentada por uma velha polêmica entre historiadores: o cinema brasileiro começou na primeira filmagem ou na primeira exibição de uma película por aqui? Mesmo considerando esses dois marcos, há grande imprecisão histórica no uso dessas efemérides.
Os mineiros José Fernandes e José Roberto Novaes, redatores da Revista do Cinema, foram os primeiros a sugerir em 1954 uma data inaugural para o Cinema Brasileiro: 15 de novembro de 1905. Foi nesse dia que supostamente o português Antônio Leal, repórter fotográfico profissional, que então começava a aventurar-se como cinegrafista, filmara imagens da avenida Rio Branco no Rio de Janeiro.
A data de 19 de junho de 1898 é hoje largamente utilizada em muitos textos historiográficos e jornalísticos como o dia do registro das primeiras imagens em movimento no Brasil. O italiano Afonso Segreto voltando de sua viagem à Europa, onde teria ido comprar negativos e uma câmera Lumière, filma, a bordo do paquete Brésil, o primeiro plano em terras tupiniquins, flagrando a entrada da Baia de Guanabara.
Esse pioneirismo na realização das primeiras filmagens é rebatido por vários historiadores. Em Nossa aventura na tela: a trajetória fascinante do cinema brasileiro (1988), Carlos Roberto de Souza questiona esse marco fundador, atribuindo a outro italiano, Vittorio di Maio, ainda no final de 1897, as primeiras imagens cinematográficas captadas no Brasil. Trata-se também de hipótese sujeita a muita contestação. O programa de exibição que registra a passagem di Maio por Petrópolis nesse ano continha dois títulos “suspeitos”: Chegada ao trem em Petrópolis e Bailado das crianças no colégio no Andaraí. Há grande desconfiança entre estudiosos sobre a autenticidade dessas fitas, já que era prática comum na época utilizar vistas de filmes estrangeiros disfarçadas de conteúdo nacional para suscitar maior interesse do público local.
No capítulo Primórdios do cinema no Brasil, escrito para a coletânea Nova História do Cinema Brasileiro, publicada em 2018, José Inácio de Melo Souza acrescenta mais um complicador para incendiar esse debate historiográfico: a filmagem feita em 1897 por Cunha Salles, um documentário litorâneo que trazia imagens do mar avançando sobre um trapiche. Onze fotogramas desse filme, arquivados na Cinemateca Brasileira, foram utilizados na realização do curta-metragem Remanescências (1997) de Carlos Adriano. Com a digitalização das imagens e o uso de um software de edição, Adriano produziu uma animação da cena registrada por Cunha Salles. Por meio de fusão ou duplicação dos fotogramas, Remanescências reproduz a ilusão visual do filme original. Não seriam esses fotogramas, que se filmados em 16 quadros por segundo corresponderiam a cerca de meio segundo de filme, as imagens inaugurais do nosso cinema?
Quanto à data da primeira exibição pública, há menos controvérsia. Ela teria ocorrido em 8 de julho de 1896 na Rua do Ouvidor, número 57. Entre os 13 títulos exibidos, encontravam-se documentários e ficções comprados de diversos produtores atuantes na Europa e nos Estados Unidos.
Também é utilizada a data de 5 novembro que, na realidade, não se refere ao dia da primeira exibição pública em 1896, mas há dois outros acontecimentos marcantes: a morte de Humberto Mauro em 5 de novembro de 1983, consagrado como pai-fundador de um cinema genuinamente brasileiro ou ainda uma homenagem ao cineasta Paulo Cesar Saraceni, ícone do Cinema Novo, para muitos ainda considerado o apogeu estético da nossa cinematografia, nascido nesse dia em 1933.
Desde 2019, o cinema brasileiro vive, mais uma vez, tempos difíceis, com paralisação das produções e dificuldade de colocar seus filmes nas telas. A cinemateca brasileira, responsável por abrigar boa parte de nosso patrimônio cinematográfico, encontra-se fechada por questões políticas e administrativas e sofreu recentemente mais um incêndio que destruiu relevante acervo documental. Saudar o cinema brasileiro é tarefa essencial para reafirmar sua importância como elemento representativo da cultura e da identidade nacional. A data da comemoração é, na verdade, o que menos importa.
Por Heverton Oliveira, Doutorando
em Cinema e Audiovisual da UFF.