A partir do início do século XIX, com a consolidação da lavoura açucareira e a consequente necessidade de mão de obra escravizada, houve uma grande movimentação regional que permitiu que a Vila São João de Macahé[i], recém-criada, se desenvolvesse entre a vastidão do oceano Atlântico e as regiões férteis do interior do seu território.[ii]
Em meio a esse cenário promissor, no mês de maio de 1832, depois de um curto período de tempo no Rio de Janeiro, fixou residência em Macaé o comerciante português Francisco Domingues de Araújo. Da corte, ele vislumbrou o potencial vertiginoso daquela pequena localidade para o comércio transatlântico de bens de consumo, mas, especialmente, para o tráfico negreiro.
De frente para a foz do Rio Macaé no seu encontro com o mar, Francisco levantou sua residência, finalizada em 1838. Um amplo sobrado de dois pavimentos, capaz de abrigar confortavelmente sua família, demonstrar seu renome e prestígio social alcançado, além de ser considerada, por muitos anos, a melhor residência de Macaé. Uma casa com vocação para decisivos encontros políticos, local de hospedagem do jovem Imperador Pedro II em sua primeira viagem à região Norte Fluminense[iii], no ano de 1847.[iv]
Mais tarde, num processo de sobreposição de funções ainda balizado pela vocação política, no final dos anos 1860 o imóvel situado na Rua da Praia[v] foi alugado para a Câmara Municipal de Macaé para funcionar como sua sede. Saía de cena a “Casa de Família” para entrar a “Casa de Câmara”.
Adquirida pelo Legislativo Municipal em 1892[vi], a antiga residência da Família Araújo somente ganharia novos ares em 1927. A reforma do velho sobrado encomendada pelo Prefeito Coronel Sizenando, que ficou a cargo do architeto-construtor Joaquim da Silva Murteira, remodelou a construção original ampliando-a em direção à Rua Direita (atual Avenida Rui Barbosa), em cujo anexo passou a funcionar a sede da Municipalidade, além de abrigar o Tribunal do Júri.
Desde sua construção aos dias atuais são 185 anos nos quais o tempo correu suave como as águas de um rio. Período em que diluíram-se velhas histórias, mas permaneceram muitas marcas passado; vieram novos fluxos de pessoas, trajetórias, recomeços junto com a instalação da sede da Petrobras no município e toda cadeia de petróleo, a partir de 1978.
Com o tempo, o Tribunal do Júri e Prefeitura trocaram o prédio por endereços próprios. Por último, em 2012, a própria Câmara Municipal mudava-se para sua nova sede adequada à contemporaneidade.
Entre outras ações de cuidados ocorridas no passado, recentemente a direção da Câmara Municipal de Macaé promoveu uma grande reforma no prédio de sua antiga sede, legalmente convertido em Museu do Legislativo por resolução da Mesa Diretora em 2015; e em Centro Cultural pela lei nº 4.559, de 2019.
Independente de sua recente designação e reusos, o “centenário edifício da Câmara” é uma “testemunha sobrevivente” da trajetória dos principais acontecimentos políticos e sociais de Macaé nos últimos cento e oitenta e cinco anos. Tornando-se, portanto, uma referência fundamental ao município, resistente à especulação imobiliária promovida como reflexo da economia do petróleo, que diluiu outras edificações referenciais e transformou bruscamente a paisagem local.
Se em termos de singularidade os cuidados com o prédio se impõem como obrigatoriedade à Câmara Municipal, sua proprietária; em termos patrimoniais, também cabe entender a representação exercida pelo prédio em fomento à cidadania cultural, num município no qual em torno de 70% de sua população adulta é composta por migrantes atraídos pelo arranjo produtivo local.
Ao entendermos o cuidado com o patrimônio como uma etapa fundamental para a construção de políticas culturais, através da sensibilização de pessoas, da promoção de identidades e de cidadania, precisamos também refletir que a história da cidade também é a história das pessoas que ali vivem e se movimentam. O que automaticamente nos leva a pensar sobre as individualidades por detrás dos monumentos, dos edifícios, dos tesouros culturais que compõem o chamado patrimônio do lugar.
Mediante tudo o que já se sabe sobre a trajetória do edifício em questão, em extensão à própria história de Macaé, pela perspectiva social do cuidado, permanecem inúmeras perguntas, além de necessárias e assertivas retificações democráticas e ações afirmativas no processo possível de construções entre cultura, identidade e cidadania. Considerando que, por si só, o patrimônio está mais tendencioso às continuidades, do que propriamente às mudanças potenciais na forma de encará-lo, reutilizá-lo e torná-lo útil à sociedade.
Por Meynardo Rocha de Carvalho – Historiador, Doutor em Memória Social.
[i] Criada por decreto do Príncipe Regente Dom João de Bragança, em 29 de julho de 1813.
[ii] Além da produção canavieira nas baixadas, nas áreas mais altas do município e regiões circunvizinhas, a produção cafeeira foi imensa, dependendo do porto de Macaé para alcançar o Rio de Janeiro e outros destinos. Segundo a historiadora Maria de Fátima Gouvêa: “A produção fluminense de café dobrou seu montante na década de 1830, e triplicou na década seguinte.” O que impactou diretamente nos processos de exportações, quanto na entrada de mão de obra escravizada para dar conta da produção cafeeira, de modo geral, e açucareira, mais restrita ao Norte Fluminense. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das Províncias. Rio de Janeiro, 1822 – 1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 24 e 25.
[iii] A viagem teve como objetivo principal a visita do Imperador às obras iniciais do fabuloso canal Campos-Macaé, uma obra faraônica do Segundo Reinado na região que objetivava ligar a região açucareira de Campos do Goytacazes ao Porto de Macaé.
[iv] Crônica: Dom Pedro II e os papagaios. In: PARADA, Antonio Alvarez. Coisas e gente da Velha Macaé (Crônicas históricas). São Paulo: EDIGRAF, 1958. p. 89 – 92.
[v] Tradicional e histórica via pública da cidade que margeia o Rio Macaé na área de sua foz. No passado, essa rua era composta por alguns pequenos ancoradouros em frentes a armazéns de produtos variados, inclusive açúcar e café.
[vi] Livro de Transcripção dos Immoveis, nº 3 – A, folha 25. Manuscrito. Cartório do 1º Ofício de Notas de Macaé.
Foto da inauguração: “Fon-Fon” (Revista), Rio de Janeiro (RJ), 04/06/1927, n. 23, p. 55.