Por João Carlos Nara Jr*.
Historiador, Arquiteto & Urbanista
Ph.D. História Comparada
Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro
Assessor de Patrimônio Cultural do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ
Pesquisador no Instituto Pretos Novos
O Valongo, localizado no coração do Rio de Janeiro do século XIX, foi o cenário de um dos capítulos mais sombrios e menos discutidos da história brasileira: o destino final de milhares de africanos escravizados que chegavam à América. Recentemente, uma trilogia de livros lança luz sobre essa história, oferecendo um olhar inédito e profundo sobre o tráfico negreiro e seus impactos humanos.
Financiados por uma emenda parlamentar do ex-deputado David Miranda, esses três volumes formam um conjunto poderoso que nos convida a encarar de frente um dos períodos mais duros de nosso passado. Os dois primeiros livros já foram publicados, e o terceiro está prestes a sair do prelo, marcando um momento significativo para a preservação e compreensão de nossa história.
A Morte no Valongo
O primeiro volume da trilogia é um fac-símile dos registros de óbitos da Freguesia de Santa Rita no Valongo, cobrindo os anos de 1824 a 1830. Esses documentos oferecem um testemunho silencioso, mas impactante, das vidas perdidas logo após a chegada ao Brasil. Cada entrada no registro representa uma história interrompida, um sonho desfeito, uma vida roubada pela brutalidade do tráfico. O livro se inicia com um texto contextual sobre o complexo escravagista, fornecendo ao leitor uma base sólida para compreender a magnitude desses registros.
O Cais e o Cemitério
O segundo volume apresenta os registros dos últimos anos do tráfico realizado a norte do Equador, abrangendo o período de 1812 a 1818. Este livro também se abre com uma contextualização histórica, focando nas mudanças políticas e sociais que o Rio de Janeiro experimentou desde a chegada da família real portuguesa até a Independência do Brasil, passando pela pressão diplomática britânica em prol do abolicionismo. Essa abordagem permite ao leitor entender como o tráfico negreiro se entrelaçava com os grandes eventos históricos do período.
Silêncios que Gritam
O terceiro e último volume da trilogia vai além da mera reprodução dos registros. Ele oferece uma transcrição completa e uma análise detalhada de todos os óbitos registrados no Valongo. Esta obra dá voz aos silenciados, interpretando os dados para revelar padrões, tendências e histórias individuais que os números frios, por si só, não conseguem contar. É um trabalho que transforma estatísticas em narrativas humanas, permitindo-nos vislumbrar as vidas por trás dos números.
Juntos, esses três volumes formam um tríptico poderoso que não apenas documenta o passado, mas também nos desafia a refletir sobre o legado da escravidão em nossa sociedade atual. Eles ressaltam a importância de preservar e honrar a memória daqueles que perderam suas vidas e foram sepultados no Valongo.
Esta trilogia representa um marco importante na historiografia do tráfico negreiro no Brasil. Ao trazer à luz documentos e análises inéditas, ela contribui significativamente para o campo do patrimônio cultural fluminense, alinhando-se perfeitamente com os objetivos da Semana Fluminense do Patrimônio. Essas obras não são apenas um registro histórico, mas uma ferramenta poderosa para educação, reflexão e construção de uma sociedade mais consciente de seu passado e mais empenhada em construir um futuro justo e igualitário.
Os livros serão distribuídos gratuitamente, após o lançamento, pelo Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), que fica na R. Pedro Ernesto, 32 – Gamboa.
*Os artigos publicados no blog deste site são autorais e não refletem necessariamente a posição da Semana Fluminense do Patrimônio, bem como das instituições, organizadoras, patrocinadoras e apoiadoras da SFP.