Por Paulo Sérgio Barreto (Sociólogo e representante legal
do Coletivo Cultural Museu da Pesca Tradicional/Sala Expositiva
Mestre Chonca)*.
O Museu da Pesca Tradicional/Sala Expositiva Mestre Chonca/Circuito dos mestres sabedores da cultura popular é um convite à troca, à vivência e ao compartilhar dos ofícios, saberes-fazeres e maestrias tradicionais entremeados por diálogos em “rodas de conversas”, a partir das ciências dos saberes tradicionais junto à sua natureza profunda, com envolvimentos sustentáveis, frente aos lugares de sabedorias em memórias alargadas, em camadas subterrâneas entre os distintos, diversos e heterogêneos mestres sabedores. Esta proposta volta-se à salvaguarda, preservação, reconhecimento, valorização e visibilidade dos “saberes-fazeres” relacionados à pesca tradicional, sobretudo as questões relativas à memória coletiva, aos vínculos e pertencimentos e a preservação do patrimônio cultural local.
Através da pesquisa social participativa com trabalho de campo etnográfico se recorre, em termo metodológico, à documentação audiovisual para a salvaguarda e o registro oral em memória coletiva e social e as devolvem aos sujeitos ou aos grupos sociais enquanto devolutas sociais (ou devolutivas) dos bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e natural das sucessivas comunidades de destino. Por exemplo: na salvaguarda da pesca tradicional de canoas de boçarda e na defesa do território da pesca da Praia do Pontal. Ou mesmo, na organização dos “pequenos museus/salas expositivas” junto aos membros do “Circuito dos mestres sabedores da cultura popular” e na criação do “Museu da Pesca Tradicional/Sala Expositiva Mestre Chonca”, em Arraial do Cabo, na Região dos Lagos (RJ).
O objetivo estratégico do Museu da Pesca Tradicional/Sala Expositiva Mestre Chonca/Circuito dos mestres sabedores da cultura popular, em Arraial do Cabo, na Região dos Lagos (RJ), é de fomentar o reconhecimento social e a visibilidade pública dos seus membros a partir das estruturas interpretativas, expostas como “pequenos museus/salas expositivas” articulados e descentralizados na cidade. Alguns destes espaços localizam-se nos territórios de pesca, a céu aberto, com placas em PVC fixadas com textos concisos e imagens nas paredes (internas e externas) dos paióis, ateliês, oficinas, coletivos, espaços culturais e nas residências descentralizadas entre os bairros e as beiras de praias de Arraial do Cabo.
Estes espaços não são cenários para moradores e visitantes e nem tão pouco para o consumo do turismo de massa de sol e praia. Se respeita os lugares de sabedorias com as suas identidades culturais e possíveis alteridades na autoria e autenticidade das experiências e das vivências, em recíproca interação, entre os mestres sabedores da cultura popular com os seus conhecidos moradores e vizinhos, além de camaradas, companheiros e pescadores tradicionais.
O Museu da Pesca Tradicional/Sala Expositiva Mestre Chonca, criado em 21 setembro de 2016, é o local de centralização, produção e difusão das ações educativas em pesquisa social e em ciência da natureza articuladas entre os membros do “Circuito dos mestres sabedores da cultura popular” com cientistas, professores, estudantes, moradores, pescadores, visitantes e turistas. O Mestre Chonca (Wilson Luiz da Silva), carpinteiro naval tradicional, está nesta área, desde o final dos anos de 1970 fazendo reformas/consertos e a transmissão da carpintaria tradicional, assim como, desde sempre, este, sempre foi o local de encalhe, estacionamento e guarda das canoas de boçarda da Praia Grande.
Em retrospectiva, o marco dessas articulações inicia-se em 2010, no momento em que a prefeitura local realizava obras na orla da Praia Grande, criando embaraços, constrangimentos e transtornos operacionais na área do estaleiro naval do Chonca e no local de encontro dos antigos pescadores e moradores, designado como Banco do pau dos velhos ou Banco do pau mole (homens de idade avançada ou não).
Neste período o pescador e carpinteiro naval Wilson Luiz da Silva (Mestre Chonca) recebeu o prêmio do edital “Mestres e Grupos das Culturas Populares”, da Secretaria do Estado da Cultura do Rio de Janeiro (chamada pública nº 027/2010), por ele transmitir, informalmente, seu saber-fazer reformas de canoas de boçarda para pescadores e moradores. Entre 2013 a 2015, numa articulação entre o ETRL/IPHAN e a gestão da RESEXMar AC/ICMbio, ocorreu a reforma da canoa de boçarda, chamada Veada, realizada pelo Chonca com aprendizes. O trabalho resultou em 35 (trinta e cinco) horas de documentação audiovisual (produzi muito mais horas!) acordadas com o ETRL/IPHAN. Apesar de todos os esforços, os cupins e as formigas destroçaram a canoa de boçarda reformada.
Entre 2014 para 2015 saíram os resultados do edital de ampliação da Rede de Pontos de Cultura do Programa Cultura Viva no Estado do Rio de Janeiro (chamada pública no. 04/2014), em que foram contemplados meus dois projetos “Quilombo em evidência” (Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo da Rasa, em Armação dos Búzios) e o das “Oficinas de transmissão do saber-fazer: reformas de canoas de boçarda”, em Arraial do Cabo, representado por uma entidade de pesca por não termos CNPJ. Ambos os projetos não avançaram. Entre os vários motivos estão a crise financeira e seu aprofundamento político a partir do golpe de 2016, fora a desistência do projeto de Arraial do Cabo encaminhado por mim em documento à Secretaria Estadual de Cultura.
Também documentei as “oficinas de miniatura de canoas de boçarda” no estaleiro do Chonca com mulheres, alunos, moradores e filhos de pescadores da cidade. Entre 2015-2016 fiz o registro, com documentação audiovisual, desde o alicerce até a constituição do prédio de alvenaria e a concepção, montagem e idealização do acervo e da vitrine do “Museu/Sala Expositiva Mestre Chonca”. Somente em 2015 a Prefeitura fez as obras de alvenaria do paiol do Chonca, com duas salas e banheiro. Uma das salas, em 21 de setembro de 2016, foi transformada no pequeno Museu/Sala Expositiva Mestre Chonca. Localizado na Praia Grande, este museu busca reformar as grandes canoas de boçarda (ou “bordada” ou de um “tronco só”) ao trabalhar com a transmissão do saber-fazer das oficinas de reformas de canoas de arrasto de beira de praia e nas oficinas de miniatura de embarcações, ao contribuir para a salvaguarda da pesca tradicional e territórios dos “Portos das Canoas” das praias de Arraial do Cabo (RJ).
O acervo da “Sala Expositiva” do museu é composto por ferramentas manuais de carpintaria naval e por miniaturas artesanais de canoas de boçarda – gentilmente, emprestadas e/ou doadas – feitas por diversos artesãos e moradores da cidade, inclusive, pelos próprios alunos das oficinas de miniaturas de canoas, ministradas pelo mestre “Chonca”, entre outras ações. O acervo ainda conta com amostras de madeiras e fragmentos vegetais (madeiras centenárias e/ou milenar da Mata Atlântica que se transformaram em canoas monóxilas) e que se constituem em um testemunho do conhecimento tradicional relacionado à matéria prima usada na construção e/ou reparo de canoas artesanais.
Até o presente momento não houve ampliação dos espaços do museu – conforme proposta e memorial descritivo e com projeto arquitetônico com custos e orçamentos definido pela Secretaria de Obras da gestão de Arraial do Cabo (Processo no.1020/18, de fevereiro de 2018). A crise sanitária e econômica alterou os rumos da obra do Museu que se iniciaria no ano de 2020 e, hoje, todo este trabalho, após obtermos, em 2023, o reconhecimento como Ponto de Memória – Coletivo Cultural do Museu da Pesca Tradicional//Sala Expositiva Mestre Chonca, pelo IBRAM/MINC, vem sofrendo revés e perdas dos acervos e da estrutura do prédio, além da invasão, paulatina, do pátio interno e do entorno do Museu feitas por ambulantes de beira de praia e com a destruição dos espaços da carpintaria naval e, por conseguinte, da memória coletiva e social por omissão, inação, destruição e cumplicidade dos entes públicos. Possivelmente, em 2025, essa situação será revestida a contento com ações junto ao MPF – Ministério Público Federal.
Referências bibliográficas:
BARRETO, Paulo Sérgio (2021). “A pesca artesanal de canoas de boçarda em Arraial do Cabo (RJ)” defendida, recentemente, no Instituto de Psicologia/Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP). Https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-23062021-183324/pt-br.php.
BARRETO, Paulo Sérgio (2018). A pesca de arrasto em Arraial do Cabo. Cabo Frio: Revista Nossa Tribo, núm. 22, p. 10-11 (primeiro trimestre).
_____________________ (2018). Relatório de atividades do Circuito dos Mestres Sabedores da Cultura Popular. Relatório Final. ICMbio/RESEXMar AC. Arraial do Cabo, dezembro, 31 págs. (mimeo).
_____________________ (2015). “Oficina de Carpintaria Naval Tradicional (Reparos de Canoa de Boçarda) de Arraial do Cabo/RJ”. Relatório Final. IPHAN/ETRL – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Escritório Técnico da Região dos Lagos. Arraial do Cabo: 03 de setembro de 2015, 30 pág. (mimeo).
_____________________ (2015). A escola naval artesanal do Mestre Chonca na Praia Grande, em Arraial do Cabo (RJ). In: Olhares sobre o Patrimônio Fluminense (2011-2014). (Org.). Carmem Machado et al. Rio de Janeiro: In-folio, p.125-126;
BARRETO, Paulo Sérgio e TURRINI, Jullia (2020). Os “cantos de praia” da pesca tradicional e a preservação da memória cultural na Região dos Lagos. In: Cabo Frio revisitado: a memória regional pelas trilhas do contemporâneo. (Org.). BARRETO JÚNIOR, Ivo. Cabo Frio: Editora Sophia, p. 361-394.
BARRETO, Paulo Sérgio; LASMAR, Viviane e FARIA, Rafaela (2015). Relatos das ações institucionais entre o ICMbio e demais parceiros para a salvaguarda do patrimônio cultural e natural em Arraial do Cabo. In: Paisagem, Imaginário e Narrativas. (Org.). RIBEIRO, Sandra e Araújo, Alberto. São Paulo: Editora Zagodoni, p. 218-225.
BARRETO, Paulo Sérgio et al. (2012). “Primeiro Relatório de Atividade: Mestres Sabedores da Cultura Popular”. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMbio/RESEXMar AC, snt, Arraial do Cabo, 58 págs. (mimeo).
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