Repleto de atividades para todos os gostos culturais, o terceiro e último dia do Encontro do Patrimônio Fluminense começou com uma debate sobre a relação entre as intervenções de grande porte e as transformações na paisagem da região da Costa Verde. À tarde, o evento prosseguiu ao ar livre, com a apresentação da Feira de Gastronomia e Artesanato, a premiação do concurso cultural de fotografia e poesia Olhares sobre o Patrimônio Fluminense, a apresentação do Jongo do Quilombo do Campinho e do Canto das Três Raças, por Laura Santos. Encerrando a programação deste ano, um encontro entre contadores de história trouxe causos divertidos e inusitados ao palco do Sesc Paraty.
“Paraty tem que decidir se quer ser mito ou cidade”.
Durante o século XVIII, a cidade de Paraty funcionava como rota de escoamento, através do porto instalado na cidade, do ouro e pedras preciosas que seguia da região das Minas Gerais para Portugal. Mais tarde, com a construção de um caminho que ligava Minas diretamente ao Rio de Janeiro, a cidade passou por um isolamento econômico, mantendo suas características ambientais preservadas. A dificuldade de acesso favoreceu a preservação do patrimônio cultural e material das comunidades tradicionais da região caiçaras, quilombolas e índios.
Entretanto, a partir da vinda de grandes empreendimentos imobiliários já na década de 50 e, principalmente, com abertura das estradas Paraty-Cunha e a rodoviária Rio-Santos, nos anos 1970, mudanças profundas se fizeram sentir em toda a paisagem da região. O novo cenário foi reforçado pela construção da central nuclear de Angra dos Reis, a recepção das estruturas dos estaleiros, a chegada do turismo de veraneio e mais recentemente a exploração do pré-sal na Bacia de Santos.
Provavelmente, depois do tombamento feito pelo Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), turistas do Rio e de São Paulo também foram atraídos para a cidade pelo que o cientista social André Bazzanella, técnico do Iphan da Costa Verde chamou de idealização do momento da chegada do europeu e o primeiro contato com um paraíso tropical. Há uma troca dos proprietários desse território, das mãos das comunidades locais para empresários e latifundiários. Até esse momento, a terra tinha valor de troca, e passa a ter valor econômico. “Há uma grande diáspora. As 500 famílias que ocupavam a Praia do Sono são reduzidas para 15. Tudo isso desestruturou o território tradicional antigo, que passa a sofrer de uma pobreza rural”.
“O interessante é que para criar de novo esse território, apela-se para o discurso hegemônico da conservação da natureza”, ressaltou Bazzanella. As unidades de conservação da Serra da Bocaina trabalham para manter essa mítica da paisagem da cidade. A relação com a natureza, porém é diversa da visão tradicional. O sociólogo apontou para uma questão que deve servir de reflexão: “Paraty tem que decidir se quer ser mito, com todas as suas características preservadas, ou uma cidade, com desenvolvimento econômico, e assumir o ônus dessa escolha”.
O professor Amaury Barbosa, conselheiro do Instituto Histórico e Artístico de Paraty, vê na história da cidade o “perfeito laboratório” para se chegar a esta resposta. Paraty significa jazida do mar e concentra várias preciosidades, desde as humanas a recursos naturais. Prova disso é que já passou por vários ciclos de riqueza: ouro, pedras preciosas, açúcar, entre outros. A atração de turistas e de outros empreendimentos pode ser considerado um desses ciclos. Com o interesse, principalmente econômico, surgem as ocupações desordenadas, a marginalização das comunidades tradicionais e a degradação do ambiente.
Ivo Barreto, superintendente do Iphan trouxe o caso de Alcântara no Maranhão para contribuir com a reflexão. Ele mostrou que assim como a cidade da Costa Verde, Alcântara também tinha uma história relacionada a ciclos de riqueza e exploração pela metrópole colonial, associada a um isolamento pela dificuldade de acesso e a preservação do patrimônio cultural e ambiental pelas comunidades tradicionais – descendentes de ex-escravos – ali existentes.
“Em pleno regime militar, nos anos 1980, esse universo encantador de Alcântara recebeu a Base Aeroespacial”, contou Barreto. A intervenção gerou impacto desmedido na cidade: remoção e realocação de famílias, formação de favelas e palafitas, abandono de agrovilas, desestruturação das comunidades, e esgotamento dos recursos naturais. Em suma, o esfacelamento do tecido social”, afirmou.
O papel do Parque Nacional da Serra da Bocaina também fez parte das discussões. O arquiteto Francisco Livino do Instituto Chico Mendes apresentou um panorama das questões ligadas à preservação da fauna e da flora locais. Chefe da maior reserva de mata atlântica do país, para ele é difícil manter uma fiscalização efetiva em todos os 17 mil hectares: “Temos a pior relação entre técnicos por hectares entre os parques do rio”, ponderou.
Ele concordou que o caso de Alcântara é um ótimo exemplo para mostrar que em relação à Bocaina essa mudança do território já está acontecendo. Livino usou imagens de territórios ocupados desordenadamente dentro da área de preservação, que revelaram a situação em que se encontra a área de características únicas naturais e ambientais. “A evolução demográfica a partir de 1970, aumentou o adensamento populacional. “Hoje, temos que trabalhar com cuidado pois as pessoas que estão nesses locais, assim como a mata atlântica, são vítimas do abandono do poder público”, afirmou.
Uma festa em frente à Igreja de Santa Rita
O público pode, além de experimentar a comida e doces típicos da região, conhecer mais sobre a igreja de Santa Rita, patrimônio histórico e cultural da cidade, que abriga o Museu de Arte Sacra de Paraty desde 1973. A igreja foi construída para atender aos “pardos libertos” de Paraty, que tinham o direito de serem enterrados no cemitério da irmandade. Os participantes do Encontro do Patrimônio Histórico fizeram uma vista guiada à obra de restauração em andamento nas dependências do templo e conheceram as catacumbas ao lado da igreja, onde se faz atualmente uma escavação arqueológica.
Mais tarde, após a premiação dos vencedores do concurso cultural Olhares sobre o Patrimônio Fluminese, foi a vez da cantora Laura Santos apresentar da janela da Igreja de Santa Rita, o Canto das três raças, e do Jongo dançado pelas crianças e adolescentes do Quilombo do Campinho, em Paraty.